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  • Julian Henrique Dias Rodrigues

TRG: Homicídio qualificado por motivo torpe e conflito de terras em aldeia trasmontana

Esteve em discussão no Tribunal da Relação de Guimarães, a 11 de setembro de 2017, recurso em matéria penal que abordou a questão do homicídio qualificado por motivo torpe e frieza de ânimo, no contexto do conflito de terras.


Restou provado que o crime ocorreu após desavenças por problemas derivados dos limites de uma propriedade, precisamente relacionados com as demarcações das extremas de um terreno.


Quanto à qualificadora do motivo torpe, a decisão assinalou que numa comunidade rural em que a terra tem, além do valor patrimonial, "um valor simbólico primordial e é fonte de conflitos e paixões violentas, as divergências relacionadas com questões de propriedade e demarcação de terrenos não revelam um egoísmo mesquinho e insignificante do arguido, cujo comportamento, sob esse prisma, não pode ser reputado de fútil.".


Trazendo à memória a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o Acórdão destaca que a frieza de ânimo relaciona-se com o processo de formação da vontade de praticar o crime e "traduz calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução".


A Corte afastou as circunstâncias qualificadoras, provendo parcialmente o recurso.

 

I - O recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o ónus de especificação previsto nas alíneas do nº 3 do citado art. 412º do CPP, o qual, no que se refere à especificação das “concretas provas”, só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova (ou de obtenção de prova) e com a explicitação da razão pela qual impõem decisão diversa da recorrida.


II - Sendo certo que neste tipo de recurso (impugnação ampla da matéria de facto) o tribunal da relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.


III - Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos, produzidos por pessoas dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.


IV - De acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta, mas essa faculdade não comporta apreciação arbitrária, não motivável nem objectivável, assente em meras impressões subjectivas incontroláveis ou em explanações ou inferências que não encontram qualquer suporte nos meios de prova produzidos, antes tem, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos.


V – E, neste âmbito, o princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida: perante a persistência de uma dúvida razoável, exige-se uma pronúncia favorável ao arguido sobre os factos relevantes para a solução da causa.


VI - Sendo o dolo um elemento da vida interior – ou, dito de outro modo, um facto do foro psicológico – do agente, por isso, impossível de apreender directamente e indemonstrável de forma naturalística, o tribunal pode considerá-lo provado por o deduzir ou inferir, fazendo uso das regras da experiência comum, de dados que, com muita probabilidade, o revelem, ou seja, de outros factos que com ele normalmente se ligam.


VII - No C. Penal português a qualificação do homicídio é feita no artigo 132º segundo a técnica dos exemplos-padrão, configurando-se no nº 1 a tipicidade da qualificativa e no nº 2 a indicação, meramente exemplificativa, de alguns índices que poderão revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que o tipo se refere. Por especialmente censuráveis deve entender-se as circunstâncias de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores; e por especial perversidade tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, o que pode reconduzir-se à atitude má, de crasso e primitivo egoísmo do agente.


VIII - No entanto, torna-se necessário que a conduta do agente, em concreto, revele uma especial censurabilidade ou perversidade que justifique, pela referida actuação, a maior severidade da punição devida. E, subjectivamente, esse juízo especial só é sustentável se o elemento subjectivo, o dolo, também abranger essa condição reveladora da especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, se o agente actuar com consciência e vontade de que a sua conduta lesa a vida de uma pessoa que se encontre numa condição de especial vulnerabilidade.


IX - Motivo “torpe” ou “fútil” significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, fundado num profundo desprezo do valor da vida humana, que não pode razoavelmente explicar e muito menos justificar a conduta, sendo frívolo e revelador da desproporcionalidade entre o que impulsiona a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que aquela se objectivou.


X - A circunstância qualificativa “frieza de ânimo” está relacionada com o processo de formação da vontade de planear e persistir na execução da morte, implicando a reflexão e um amadurecimento temporal sobre os meios e o modo de realizar o crime e, por isso, uma actuação insensível – com indiferença pela vida humana –, com a escolha e o estudo ponderados, calmos e imperturbavelmente reflectidos dos meios que facilitem a execução do crime ou pelo menos diminuam acentuadamente as possibilidades de defesa da vítima.


XI - No caso dos autos, a acção do arguido foi desencadeada na sequência de o próprio ofendido não se ter coibido de investir na sua direcção, empunhando um objecto (cajado de 1,51m) apto a agredi-lo, quando se encontravam de relações cortadas por motivos relacionados com as extremas de um terreno, sentindo o arguido receio do mesmo, sendo o descrito comportamento da vítima, objectivamente, provocatório, desafiante e ofensivo, o que não obsta ao reconhecimento de que o resultado da reacção do arguido – a eliminação do bem mais precioso (a vida de uma outra pessoa) – foi, manifestamente, desproporcional e intensamente censurável.


XII - Todavia, essa desproporcionalidade deve ser avaliada dum ponto de vista ético-cultural e à luz de padrões comuns do meio em que o crime ocorreu: uma pequena aldeia de uma recôndita zona transmontana.


XIII - Ora, nesse enquadramento, numa comunidade rural em que a terra tem, além do valor patrimonial, uma valor simbólico primordial e é fonte de conflitos e paixões violentas, as divergências relacionadas com questões de propriedade e demarcação de terrenos não revelam um “egoísmo mesquinho e insignificante” do arguido, cujo comportamento, sob esse prisma, não pode ser reputado de fútil, no conceito exposto em IX, contrariamente ao sustentado na decisão recorrida.


XIV - E o apurado estado emocional do arguido, que se sentiu amedrontado e receoso perante a vítima – apenas disparou quando esta, com uma atitude provocatória e desafiadora, estava já muito próxima de si –, também não permite concluir que o mesmo haja agido com frieza de ânimo, que tenha reflectido, ponderada e calmamente, sobre o meio empregue para matar o ofendido, nos termos que pressuporia o preenchimento da circunstância qualificativa prevista na al. al. j) do nº 2 do artigo 132, com o conceito exposto em X.


XV - Por outro lado, não se verificam os pressupostos da legítima defesa, invocada como causa de exclusão da ilicitude, porquanto, sendo certo que, como se viu, a acção do arguido foi desencadeada na sequência do analisado comportamento provocatório, desafiante e ofensivo da vítima, não pode afirmar-se que na matéria de facto provada se revele um comportamento humano que configure uma ofensa a direitos ou interesses juridicamente tutelados do arguido recorrente a que se adequasse e proporcionasse a conduta deste: no caso vertente, procedendo a uma avaliação objectiva da dinâmica do evento, não se retira de tais factos que o disparo do arguido sobre o ofendido, ainda que efectuado enquanto durava o mencionado comportamento provocatório deste, fosse o meio racionalmente necessário e idóneo a deter uma agressão e o menos gravoso para o potencial autor desta, ponderando, particularmente, a possibilidade ao dispor do arguido de, para evitar a possível agressão, dirigir o disparo para uma zona não letal do corpo do alvejado, mesmo sem desconsiderar o receio que tinha da vítima.


XVI – Sendo muito exacerbada a gravidade objectiva da conduta do arguido, já que atingiu, com dolo directo, o valor humano supremo, cuja violação suscita forte reprovação social, par de intranquilidade e insegurança, pese embora devam ser atendidas na fixação concreta da medida da pena as circunstâncias que envolveram a prática do crime e que foram sendo ponderadas, as mesmas não têm suficiente relevo para que se repute como sendo diminuída, de forma acentuada, quer a culpa do arguido, quer as exigências de prevenção e, consequentemente, a necessidade da pena, não estando, pois, preenchidos os requisitos para a sua atenuação especial.


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