Manifestação de interesse: pode o SEF multar quem aguarda marcação?
As filas e agendamentos longínquos no SEF - e mesmo a ausência de vagas, recentemente noticiada - têm gerado apreensão nos imigrantes que buscam se regularizar pela via da manifestação de interesse (autorização de residência com dispensa de visto).
Diante deste quadro, surge com frequência a pergunta: apresentada a manifestação de interesse (em regra, pelos arts. 88 e 89 da Lei de Estrangeiros e Migrações), pode o SEF multar o imigrante pelo tempo que permaneceu em situação irregular?
Para responder à questão é preciso antes compreender a base legal das multas (coimas segundo a nomenclatura jurídica portuguesa) aplicadas pelo SEF aos cidadãos estrangeiros que permanecem em Portugal por período superior ao permitido.
As contraordenações
A permanência ilegal do cidadão estrangeiro sujeita-o à contraordenação punível com coimas que variam entre 80 a 700 euros, a depender da quantidade de dias de permanência irregular (art. 192.º da Lei n.º 23/2007). Em linhas gerais, as contraordenações são comportamentos violadores da lei, passíveis de punição, mas considerados menos graves que os crimes.
O novo regime da "manifestação de interesse"
A posse de um visto de residência válido é e sempre foi a regra geral prevista no art. 77, n.º1, da Lei n.º 23/2007 para a concessão da autorização de residência.
A chamada manifestação de interesse, ou seja, o pedido de um título de residência com base em contrato de trabalho (trabalhador subordinado) ou prestação de serviços (trabalhadores independentes e profissionais liberais em geral), mesmo sem um visto prévio, funcionou até 2017 como um regime excepcional para o imigrante que ingressa em Portugal e pretende permanecer.
Mas a partir de 7 de agosto de 2017 entrou em vigor a Lei n.º 59/2017, que alterou os arts. 88 e 89 da Lei n.º 23/2007 para prever o novo caráter ordinário do procedimento, não mais excepcional e puramente discricionário.
Assim, com base em critérios de estrita legalidade administrativa, a manifestação de interesse deixou de ser uma exceção, e foi relativizado o livre critério discricionário do SEF, passando então a ser puramente direito do imigrante apresentar o pedido de residência com base nesta modalidade.
Manifestação de interesse, permanência em Portugal e as contraordenações. Ilegalidade?
Uma análise superficial da lei aponta que o cidadão estrangeiro que permanece no território português após o período permitido pela lei deve pagar a multa (coima, por prática de contraordenação).
Mas se a manifestação de interesse foi apresentada no período em que o imigrante estava coberto pelo visto de curta duração (o "visto de turismo"), e este aguarda a marcação para concluir o processo junto ao SEF, ainda assim estará sujeito à multa por permanecer por tempo superior ao período do visto "de turista"?
Segundo o Regime Geral das Contraordenações (Decreto-Lei n.º 433/82), diploma que traz as regras gerais para aplicação das sanções (no que se inclui a da permanência irregular), as regras do Código Penal português se aplicam subsidiariamente (ou seja, quando não contrariem o próprio regime).
O Regime das Contraordenações não traz qualquer disposição acerca das causas de exclusão de ilicitude.
E qual a importância disso?
O artigo 31.º do CP português elenca as hipóteses em que a ilicitude de um comportamento é desconsiderada. São as chamadas "excludentes de ilicitude".
Segundo o artigo 31.º, um comportamento não é punível quando o indivíduo encontra-se no exercício de um direito, e mais: o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.
Se a Lei n.º 23/2007 permite ao imigrante apresentar um pedido de autorização de residência independentemente de possuir um visto, e se esta modalidade não é mais considerada excepcional, podemos afirmar que a permanência no país, necessária para aguardar a conclusão do procedimento, é contrária à lei?
Entendemos que não.
Se considerada na totalidade, a ordem jurídica portuguesa permite ou, no mínimo, autoriza tacitamente este comportamento.
Se por questões de falta de pessoal e atrasos o SEF não analisa a situação do interessado, mesmo por falta de vagas para atendimento, não nos parece justo que ele seja responsabilizado pela permanência ilegal, pois está apenas exercendo o seu direito de permanecer no país enquanto a sua situação está pendente de análise.
A ilicitude da permanência acaba por ser excluída pelos arts. 88 e 89, que converteram a manifestação de interesse de procedimento excepcional para ordinário.
Nestes casos, em nosso entendimento, não há que se falar em aplicação de coima por permanência irregular.
Conclusão
A Lei n.º 59/2017 alterou o caráter excepcional da manifestação de interesse. A partir de então, ficou consagrado e foi reforçado o entendimento de que a apresentação deste pedido ao SEF nada mais é que o exercício de um direito previsto em lei.
Uma vez apresentada a manifestação de interesse e sendo necessário estar em Portugal para a sua conclusão, fica descaracterizada a ilicitude da permanência no país, ilicitude esta que é condição para incidirem as penas previstas no art. 192 da Lei n.º 23/2007.
Isto porque as causas de exclusão de ilicitude do Código Penal, designadamente o art. 31, n.º 1, e n.º 2, al. b), são aplicáveis ao Regime das Contraordenações, e a contrariedade à lei necessária para a aplicação das coimas está excluída pelas novas redações dos arts. 88 e 89, seja porque se trata do exercício regular de um direito, seja porque a legislação portuguesa, na sua totalidade, admite este comportamento.
Em síntese, entendemos que o SEF não pode aplicar coimas por prática de contraordenação àqueles que apresentam manifestação de interesse no período em que estão cobertos por um visto de curta duração (o vulgarmente chamado "visto de turista"), e permanecem no país aguardando sua conclusão, seja qual for o período necessário para tanto.
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