- Processo n.º 117/13.1TBMLG.G1.S1
STJ: Actividade noturna ruidosa e danos morais por violação do direito ao repouso
I. O facto de um estabelecimento de diversão nocturna se encontrar licenciado não dispensa o cumprimento pelos respectivos administradores/gerentes de deveres relacionados com o ruído que do mesmo irradia para o exterior, com reflexos negativos no direito ao descanso e ao sossego de quem habita nas proximidades.
II. É ilícita a actividade, geradora de excesso de ruido nocturno, ocorrida em espaço controlado pelos titulares do estabelecimento de diversão e lesiva do direito fundamental de personalidade dos autores, impedidos de descansar no interior do seu próprio domicílio, por tal comportamento traduzir violação de um direito de personalidade que, pela sua natureza e relevância, não pode deixar de se ter, em princípio, por prevalecente sobre os interesses empresariais dos RR. em explorarem, no local, uma actividade de discoteca/estabelecimento de dança durante largos períodos nocturnos.
III. Ao ajuizar sobre o modo de compatibilização dos direitos em confronto, tutelando de forma efectiva o direito de personalidade dos residentes nas imediações de estabelecimento de diversão nocturna, gerador de ruido para o exterior, - fixando nomeadamente o período possível de funcionamento - pode e deve o tribunal ter em consideração o impacto ambiental negativo global que está necessariamente associado ao tipo de actividades nele exercidas, incluindo comportamentos incívicos ocorridos no exterior do estabelecimento, desde que quem o explora com eles pudesse razoavelmente contar, por serem indissociáveis da natureza da actividade exercida, sem que tal traduza uma imputação de responsabilidade civil por facto de terceiro.
IV. Existindo uma relação de concausalidade, sendo a lesão do direito de personalidade e os consequentes danos resultado, quer de um facto imputável ao próprio réu, por ocorrido em espaço por ele controlado, quer do impacto ambiental negativo global, associado a comportamentos no exterior de terceiros/utentes, pode o lesante ser chamado a responder - na medida dessa concausalidade - pela indemnização devida aos lesados, a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais.
Montante fixado em € 8.000.
(...)
Trecho do Acórdão:
6. Qual o reflexo deste enquadramento jurídico geral na concreta solução do litígio?
Começam os recorrentes por peticionar, em primeira linha, que se decrete o encerramento do estabelecimento, por só assim se poder assegurar tutela do seu direito de personalidade, afectado pelo ruido gerado pelo respectivo funcionamento.
Sucede, porém, que toda a matéria litigiosa, canalizada para os autos e processualmente adquirida, se centrou fundamentalmente na perturbação do direito ao sossego dos lesados, decorrente do funcionamento nocturno do bar/discoteca em questão, pelo que se não dispõe de elementos bastantes para inviabilizar, desde logo, um possível e eventual funcionamento do estabelecimento como mero café/esplanada, com exclusão do funcionamento nocturno como espaço de dança (já que é nesta peculiar e específica actividade que se fundam os danos mais gravosos invocados pelos AA).
Ora, da matéria de facto apurada – e atrás especificada – decorre claramente que – apesar de algumas obras de insonorização realizadas – o estabelecimento explorado pelos RR não dispõe de condições adequadas para funcionar como espaço de bebidas e dança nocturno, por tal implicar uma lesão gravosa e desproporcionada do direito ao sossego e tranquilidade dos AA. no seu próprio domicílio, afectando, em termos intoleráveis, os seus direitos fundamentais de personalidade e pondo em causa, face à matéria provada, inclusivamente o direito à saúde destes.
Ora, como vem constituindo jurisprudência corrente, numa situação como a dos autos, em que a actividade de discoteca implica inevitavelmente a produção de ruido nocturno audível no interior da casa de habitação dos AA., inviabilizando continuadamente o seu descanso e tranquilidade (não apenas por via do impacto ambiental negativo de tal actividade, consequente aos comportamentos no exterior dos utentes do estabelecimento, mas também pelo próprio ruido gerado pela emissão de música, projectado no interior do domicílio dos lesados) tem de conferir-se prevalência aos direitos de personalidade gravemente atingidos pela actividade ruidosa.
Como se afirma, por exemplo, no muito recente Ac. de 29/11/2016, proferido por este Supremo no P. 7613/09.3TBCSC.L1.S1.
I.Os direitos ao repouso, ao sono e à tranquilidade são emanação dos direitos fundamentais de personalidade, à integridade moral e física, à protecção da saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, corolários da dignidade humana. Por outro lado, são tarefas fundamentais do Estado a prossecução da higiene e salubridade públicas, o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a efectivação do direito ao ambiente, prevenindo e controlando a poluição e os seus efeitos e promovendo a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana.
II - Os direitos fundamentais, enquanto princípios que são, não se revestem de carácter absoluto, antes são limitados internamente, para assegurar os mesmos direitos a todas as outras pessoas, e também externamente, para assegurar outros direitos fundamentais ou interesses legalmente protegidos que com eles colidam, mediante a harmonização entre uns e outros, a qual sempre implicará o sacrifício, total ou parcial, de um ou mais valores.
III - Os conflitos entre o direito fundamental de um sujeito e o mesmo ou outro direito fundamental ou interesse legalmente protegido de outro sujeito hão de ser solucionados mediante a respetiva ponderação e harmonização, em concreto, à luz do princípio da proporcionalidade, evitando o sacrifício total de um em relação ao outro e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual.
IV - A essência e a finalidade deste princípio da proporcionalidade é a preservação, tanto quanto possível, dos diversos direitos fundamentais com amparo na Constituição e, em concreto, colidentes, através da sua harmonização e da otimização do meio escolhido com a observação das seguintes regras ou subprincípios: (i) a sua adequação ao fim em vista; (ii) a sua indispensabilidade em relação a esse fim (devendo ser, ainda, a que menos prejudica os cidadãos envolvidos ou a coletividade; (iii) a sua racionalidade, medida em função do balanço entre as respetivas vantagens e desvantagens.
Por outro lado, acompanham-se inteiramente as considerações tecidas no Ac. de 29/11/2012, proferido pelo STJ no P.1116/05.2TBEPS.G1.S1, onde se afirma, de forma certeira:
A actividade do estabelecimento e de outros similares é legítima, desde que licenciada e desde que sejam respeitadas as demais regras legais, designadamente as que se mostrem necessárias para acautelar direitos absolutos de terceiros. Contudo, tratando-se de actividade que funciona essencialmente em período nocturno mostra-se imprescindível uma especial atenção relativamente aos factores susceptíveis de afectarem o sossego e a tranquilidade de terceiros, com especial relevo para os aspectos atinentes ao ajustamento da potência da aparelhagem sonora e/ou ao eficaz isolamento do som, de modo a evitar-se a perturbação de todos quantos, habitando nas proximidades, pretendam descansar.
Trata-se de matéria que, devendo obedecer ao Regulamento Geral do Ruído, não dispensa a adopção de outros cuidados quando, porventura, o respeito por tal Regulamento não seja suficiente para evitar a violação de direitos de natureza pessoal como os de personalidade, maxime quando é posto em causa o direito ao sono, ao sossego e à tranquilidade em período nocturno (Acs. do STJ, de 22-9-05, Revista nº 4264/04, e de 18-2-03 (Revista nº 4733/02).
Afinal, os direitos de personalidade não podem deixar de ser privilegiados no confronto com outros direitos, como são os conexos com o exercício de actividades lucrativas que impliquem o funcionamento de locais de diversão nocturna.
2.3. Nem sempre estes aspectos têm sido considerados, acautelados e preservados. Como a experiência o revela, não raras vezes os interesses daqueles que exploram ou que frequentam aqueles estabelecimentos de diversão acabam por se sobrepor a outros interesses ou aos direitos de outros indivíduos, perante a inacção das autoridades competentes em matéria de licenciamento ou de fiscalização de actividades ruidosas.
Com demasiada frequência se verificam comportamentos dilatórios ou atitudes de pura inércia geradoras de uma verdadeira denegação de direitos, abstendo-se aquelas entidades do uso dos mecanismos legais e/ou dos instrumentos administrativos que, com menores custos para os interessados e com mais eficácia, permitiriam uma melhor compatibilização dos direitos em conflito ou, se necessário, a cessação efectiva de situações de pura e manifesta ilegalidade.
Numa sociedade hedonista, parecem ganhar excessivo relevo tais actividades, como se não merecessem atenção os incómodos causados aos cidadãos (muitas vezes cidadãos mais idosos ou com menor capacidade de reacção) que habitam nas proximidades de estabelecimentos de diversão produtores de ruído. Omitindo-se medidas que levem a introduzir melhorias de ordem técnica ou de gestão capazes de evitar ou de atenuar os impactos negativos, são passados para plano secundário interesses inerentes a direitos subjectivos que deveriam ser merecedores de maior protecção.
Tal não se deve à falta de dispositivos legais: desde a Constituição que tutela o direito à qualidade de vida e à qualidade ambiental, passando pelo preexistente Código Civil que já na década de 60 do século XX previu a tutela dos direitos da personalidade (art. 70º), culminando com a aprovação do Regulamento Geral de Ruído (que actualmente consta do Dec. Lei nº 9/07, de 17-1, que revogou o Dec. Lei nº 292/00, de 14-11), a par da publicação de outros diplomas avulsos que regem aspectos de ordem urbanística ou relacionados especificamente com a qualidade das construções, nomeadamente com o respectivo isolamento acústico.
Como o quotidiano o revela, o que tem faltado, isso sim, é o uso adequado dos mecanismos legais já existentes, tudo se passando, com uma frequência inadmissível, como se a Lei Fundamental e outros diplomas constituíssem meros elementos decorativos de um ordenamento aparentemente moderno e zelador dos direitos dos cidadãos mas que, na realidade, acaba por descurar a tutela efectiva de direitos fundamentais.
Isto, apesar de o Regulamento Geral do Ruído prever no seu art. 4º a atribuição de competências específicas às autoridades públicas para efeito de prevenção e controlo do ruído, assegurando o cumprimento de regras que tutelam interesses de ordem pública e os direitos dos cidadãos.
Para o efeito, justificar-se-iam seguramente maiores limitações do que aquelas que a experiência revela no que concerne, por exemplo, ao licenciamento de estabelecimentos de diversão nocturna geradores de maiores incómodos para a generalidade dos cidadãos. Limitações essas especialmente justificadas em zonas habitacionais, exigindo cuidados redobrados o licenciamento desses estabelecimentos, designadamente com efectiva ponderação da sua localização, horário de funcionamento ou condições de isolamento (cfr., para o efeito, o que consta do actual Regulamento Geral do Ruído aprovado pelo Dec. Lei n. 9/07, de 17-1, ou o Dec. Lei nº 146/06, de 31-7, na sequência da Directiva nº 2002/49/CE, de 25-6).
Como refere Miguel Lopes, “é possível proceder ao isolamento acústico entre diferentes tipos de estabelecimentos e as habitações, mas a melhor forma de controlo do ruído está no zonamento de actividades”, para o efeito, “sobrepondo o bom senso aos interesses económicos em jogo, através da definição de zonas especiais para a implantação de bares e discotecas, por forma a não perturbarem as habitações”. Por outro lado, não será o facto de um determinado estabelecimento se mostrar licenciado e a cumprir formalmente todas as obrigações constantes do alvará que obstará à responsabilização dos seus proprietários, desde que se apurem factos integrantes da responsabilidade civil extracontratual, tanto mais que, como assinala o referido autor, é ao utilizador final do estabelecimento que compete o “cumprimento das exigências legais a respeito do ruído emitido pelo estabelecimento” (em Ambiente em análise, na Revista Judiciária, nº 27, pág. 27).
Ora, transpondo estas considerações de princípio para a especificidade da matéria litigiosa da presente acção, considera-se que o equilíbrio proporcional entre o direito de personalidade dos lesados e o exercício da actividade empresarial dos RR. implica – face às demonstradas condições do local – a sua inviabilidade de funcionamento como estabelecimento de dança/ emissão de música durante o período nocturno, por tal implicar o esmagamento ou lesão gravosa e desproporcional dos direitos fundamentais invocados pelos AA: e, por isso, considera-se que o ponto de equilíbrio adequado consistirá em, na procedência do pedido subsidiário formulado pelos recorrentes, proibir a utilização do local como espaço destinado a dança e emissão de música durante o período normal repouso nocturno, ou seja, entre as 22 e as 7 horas , assim se eliminando o incómodo proveniente da audição, no domicílio dos AA., do ruido da música emitida no espaço do estabelecimento e atenuando, pelo horário do respectivo encerramento, o impacto ambiental negativo causado, a altas horas, pela entrada/ saída desordenada e incívica dos respectivos utentes.
No que se refere à indemnização arbitrada aos lesados pelos danos não patrimoniais sofridos, considera-se injustificada a revogação, operada pelo acórdão recorrido, da compensação concedida em 1ª instância – em valores, aliás, moderados – pela circunstância de, perante a matéria de facto apurada, ser pessoalmente imputável aos RR. a produção de excesso de ruido no interior do próprio estabelecimento, audível no interior da residência dos AA. durante o período de repouso nocturno ; existindo, assim, um nexo de concausalidade, em que tal comportamento dos RR., a eles plenamente imputável, por ocorrer em espaço por eles controlado, se adiciona, para agravar os danos, ao excesso de ruido proveniente de comportamentos no exterior de utentes do estabelecimento.
E assim, perante tal situação de concausalidade, em que uma das causas da lesão e do dano sofrido radica em facto ilícito e culposo dos próprios RR., nada obsta a que os estes sejam civilmente responsabilizados, na medida da sua contribuição causal e pessoal para os danos invocados – repondo-se por isso, quanto a esta matéria, o decidido na sentença proferida em 1ª instância.
7. Nestes termos e pelos fundamentos apontados concede-se em parte a revista, e em consequência, revogando o decidido no acórdão recorrido:
- condenam-se os RR. a fazer cessar, de imediato, a utilização do estabelecimento por eles explorado como espaço nocturno de dança/discoteca/ emissão de música , abstendo-se de o utilizar para esses fins entre as 22.00 horas e as 07.00 horas do dia seguinte;
- repõe-se a condenação dos RR. no pagamento de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelos AA., decretada em 1ª instância , no montante global de €8.000,00 (oito mil euro), distribuídos nos termos ali determinados;
-e confirmando-se, em tudo o mais, o decidido no acórdão recorrido.
Custas da acção e recurso na proporção de 2/3 para os RR. e 1/3 para os AA.